Trios elétricos enormes e potentes, artistas soltando a voz, gente de todas as classes curtindo a festa, população caminhando atrás do trio e uma lista grande de cantores. Esse é o Carnaval que, em Salvador, conhecemos. Mas será que sempre foi assim?
Por muitos anos, o Carnaval de Salvador se bastava com um Ford – ou Fobica – carregando dois artistas tocando o chamado Pau Elétrico – mais tarde chamado de ‘guitarra baiana’. O som do instrumento era o suficiente para que amigos, familiares e vizinhos saíssem às ruas para curtir fantasiados.
Antes disso, no entanto, a festa momesca era mais restrita. Em uma conversa com o PS Notícias, o historiador e professor de História da Bahia, Murilo Mello (@murilomellohistoria), explica que o Carnaval em Salvador começa com o clube carnavalesco Cruz Vermelha, criado em 1833 e responsável por fazer grandes festas atrás dos muros, com a presença da elite baiana.
É só em 1884 que a festança começa a ter a cara do Carnaval que conhecemos hoje, com blocos de rua e carros alegóricos. Na época, os foliões, em uma quantidade bem menor, saíam do Comércio, subiam pela Ladeira da Montanha, passavam pela Barroquinha, pela Rua Direita do Palácio, e ainda pela Rua Chile, Rua da Misericórdia e Politeama de Baixo.
No ano seguinte, em 1885, com a grande festa formada pelo clube Cruz Vermelha, surge uma rivalidade criada pelo clube Fantoches da Euterpe, que iniciou uma disputa para fazer a melhor festa de rua. A partir daí, o Carnaval, ainda bastante elitizado, toma seu rumo para se tornar uma festa cada vez mais caprichada.
Primeiro Afoxé
É em 1895 que nasce o primeiro Afoxé, organizado pela comunidade afrodescendente chamada Embaixada Africana. “Eles vão desfilar com objetos, roupas de origem africana e, depois, no ano seguinte, em 1896, vai sair o segundo Afoxé, que é o Pândegos da África”, conta o historiador.
Os foliões de diferentes classes econômicas, então, saem às ruas juntos para acompanhar os afoxés pela Baixa dos Sapateiros, Taboão e Pelourinho.
Filhos de Gandhy
Com a chegada de vários afoxés e diferentes grupos de festa de rua, chega, em 1949, os Filhos de Gandhy, bloco inspirado no líder pacifista Mahatma Gandhi e criado por trabalhadores que atuavam no Porto de Salvador. O grupo, no entanto, por pouco “não sumia do mapa”.
“Eles vão se inspirar [em Gandhi] para fazer esse afoxé, que não nasce com tanta força como se tem hoje. É um bloco que, inclusive, ficou ameaçado de extinção durante uma época, mas Gilberto Gil resolver abraçar e sair no Gandhi. É assim que o bloco vai ganhar uma popularidade muito grande, muito por conta de Gilberto Gil”, comenta Mello.
O Carnaval da Fobica
Um dos principais símbolos do Carnaval de Salvador, atualmente, é o trio elétrico, mas o enorme veículo nem sempre foi a marca da festa. Em 1950, no lugar do trio, o que ocupava as ruas da capital baiana era um Ford modelo T, de 1929, conhecido por muitos como Fobica.
“Eles vão pegar esse Ford, que ficava jogado, de escanteio, e vão reformar, recortar bolas coloridas imitando confete, vão colar nela, fazer algumas adaptações e vão sair com a dupla elétrica”, explica o professor.
A tal ‘dupla elétrica’ era formada por Dodô e Osmar, que não só deram a ideia de passar pelas ruas de Salvador com a Fobica, como também tocou em cima dela, passando pela Ladeira da Montanha e seguindo para a Praça Castro Alves, local que era a grande atração da festa na época.
Era na praça histórica que aconteciam os esperados encontros entre os foliões. “A grande graça do Carnaval era sair com os nossos blocos de família, de amigos, de bairro, e geralmente ir para a Praça Castro Alves. O grande encontro era ali (…) a graça era pegar os instrumentos da gente e sair batucando, fantasiados, bebericando nas barracas que eram montadas ali na praça”.
Um ano depois da chegada da dupla elétrica percorrendo o centro da cidade com a Fobica, Dodô e Osmar recebem um novo integrante: Temístocles Aragão, surgindo, assim o chamado ‘trio elétrico’.
A Fobica, apesar do sucesso inicial, não ia durar tanto tempo, e logo daria espaço para um trio elétrico muito mais parecido com o que conhecemos nos tempos atuais. O responsável por isso? Orlando Tapajós.
“Ele vai criar o trio elétrico muito maior, montado em uma caminhonete, e daí vai surgir futuramente o trio montado em cima de um caminhão, muito maior, som melhor, e Orlando Tapajós vai ser o grande fabricante de trios elétricos da Bahia, de Salvador, do Brasil e do mundo”, diz Murilo Mello.
Além do trio elétrico
Apesar de associarmos o Carnaval de hoje apenas com o trio elétrico, Salvador também é lembrado pelas escolas de samba. “Uma das escolas mais antigas que a gente tem aqui são os Filhos do Tororó, uma escola extremamente tradicional, e a gente, nos modes do Rio de Janeiro mesmo, ia para as ruas para ver as escolas de samba passarem. Cada bairro tinha sua escola, se apresentava nas ruas e tinha muita tradição”, explica o professor.
Além do Filhos do Tororó, outra escola de samba tradicional em Salvador é o Juventude do Garcia, que participou dos primeiros desfiles de Salvador.
Saída de trios
Na década de 1960 surge uma grande quantidade de blocos de rua, que obriga o Carnaval a ter uma ordem de saída dos grupos, saindo primeiro os mais antigos até os mais novos. Nesse ‘meio tempo’, são criados novos grupos entre a juventude de Salvador.
“Os jovens ali da região do Barbalho e Santo Antônio vão fazer fantasias de lenço amarrado, estilo túnica, estilo grego, e vão virar tradição. Vários cantores importantes passaram por lá, se tornando um bloco tradicional do Carnaval de Salvador”, conta.
Outros blocos são citados pelo historiador. “A moçada do bairro de Santo Antônio vai criar os Corujas. A gente vai ter também o Bloco do Jacu, um grupo do clube da Barra, da Associação Atlética, que vai rivalizar muito com outro bloco, o Amigos do Barão. Esses quatro blocos vão ser os reis, digamos, da folia, na década de 60, da classe média soteropolitana”.
O fervor da década de 1970
Com os diferentes blocos ganhando cada vez mais espaço, chegam ao Carnaval os blocos indígenas. Na década de 70, os Commanches tomam conta da avenida e persistem até hoje com seu tradicional desfile.
É na mesma época que outras grandes novidades surgem, como a ‘Caetanave’, um trio elétrico no formato de nave especial criado por Orlando Tapajós em homenagem a Caetano Veloso, que tinha havia voltado do exílio. “[O trio elétrico] vem a ser uma loucura, vai entrar no imaginário esse Carnaval e vai ser inesquecível na mente dos soteropolitanos que viveram aquele Carnaval de 1972”, declara o professor.
Em 1976, então chegam outras mudanças, como a chegada do Novos Baianos, com um trio muito mais potente, uma sonorização melhor e um Carnaval que promete “abalar as estruturas dos trios da Bahia”.
É justamente no trio dos Novos Baianos, inclusive, que surge a novidade de se cantar em cima de um trio, que antes abrigava apenas o som dos instrumentos, sem a voz dos artistas. “Moraes Moreira vai dar um outro caráter ao nosso Carnaval quando ele assume o vocal e, junto com os outros, começa a cantar nesse trio mais potente”.
O Carnaval oitentista: nasce o Axé
O Carnaval dos anos 80 chega para superar as novidades da década de 70 com a chegada do Traz os Montes, trio elétrico com potência ainda maior do que a do Novos Baianos, e o surgimento do bloco EVA, criado por estudantes do Colégio Marista.
É também na década de 1980 que surge a banda Cheiro de Amor e o Rock de Bell, que mais tarde se tornaria o Chiclete com Banana, além do Pique, Pinel, Banda Mel, Tiete Vips e o Papa Léguas. “A década de 80 vai ser realmente uma loucura de blocos, vai começar a mudar a mortália, vão começar a usar macacão, short”, explica.
“Em 1985, a gente tem outra mudança, uma ruptura, que é o Luiz Caldas chegando. Um disco dele, Magia (…) é como o início do Axé, e aí vai trazer muita visibilidade, muito lucro para o nosso Carnaval. Mais blocos vão ser criados, festas em clubes, muita gente vai viver disso, jovens vão vender muito abadá, ingressos, vai ser uma loucura a explosão da década de 80 no nosso Carnaval”, continua o Murilo Mello.
Consolidação do Axé
A década de 1990 marca a chegada dos artistas que mais vemos nas ruas de Salvador nos dias de hoje. É nessa época que chegam Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Carlinhos Brown, Durval Lélys, Araketu, Ricardo Chaves e a Timbalada, além de Daniela Mercury, que explodiu no final dos anos 80.
Além disso, chega o Samba Reggae, criado por Neguinho do Samba, com contribuição de Ramiro Musotto, que trouxe diversos artistas internacionais a Salvador, como Michael Jackson, que gravou com o Olodum, no Pelourinho, além de Paul Simon, que gravou com o Samba Reggae.
Hoje, o Carnaval explora a pluralidade, a liberdade e os diferentes gêneros musicais, mas com foco no Axé Music, que, neste ano, completa 40 anos de história. Além dos tradicionais artistas que vemos em cima dos trios desde os anos 90, o Carnaval de Salvador também é animado por outros cantores que, atualmente, fazem muito sucesso, como Leo Santana, Xanddy Harmonia, Igor Kannário, Tony Salles, além do grupo Baiana System.
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