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O Facebook quer "privatizar" a internet e o Brasil pode ser um grande aliado

As autoridades da Índia barraram um programa do Facebook para conectar comunidades carentes. O mesmo que tem a simpatia do Brasil

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Os indianos bateram o martelo na última segunda-feira (8). As autoridades reguladoras do país não permitiram que o Facebookseguisse adiante com o Internet.org, um programa cujo objetivo é conectar comunidades carentes em nível global. A decisão ocorreu mesmo depois de uma extensa campanha de marketing que a empresa promoveu no país, com outdoors espalhados pelas cidades e anúncios nos principais veículos de imprensa. “Apoie a Índia conectada”, dizia a campanha. Teve até um bate-papo entre o primeiro ministro da Índia, Narendra Modi, e o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, transmitido ao vivo pela rede social. A intenção era levar o Free Basics, serviço que oferece acesso a determinados programas online, a um bilhão de cidadãos indianos que não estão conectados hoje. Apesar de ter uma grande tradição no mercado de tecnologia, a Índia é pouco conectada se comparada a outros países emergentes. Apenas 20% dos 1,2 bilhão de habitantes estão conectados. No Brasil, somos mais de 100 milhões, cerca de 50% da população. Em um longo editorial publicado num dos principais jornais da Índia, Zuckerberg explicou sua visão para conectar o país e perguntou: “Quem poderia ser contra isso?”.

Zuckerberg pode ter a certeza de que o Free Basics, que faz parte de um conjunto de iniciativas que estão dentro do Internet.org, é o caminho para a missão do Facebook de “conectar o mundo”. Não pode ignorar, porém, que existem críticos das mais variadas vertentes ao projeto. O Free Basics funciona assim: se você quiser ter acesso a um pacote de serviços limitado – que inclui o Facebook, o Messenger, a Wikipedia e mais algumas dezenas de sites – você acessa de graça. Se quiser ir além e entrar na internet convencional, precisa pagar. Já de largada, dizem os críticos, isso quebra um pilar fundamental que ajudou a construir a internet da forma como a conhecemos hoje: a neutralidade da rede. Esse princípio garante que todos os dados que circulam na internet possam ser acessados sem distinção de conteúdo ou origem e sem aumento do preço da conexão.

Por que a neutralidade da rede é importante? A internet é o que é hoje porque se constituiu como uma estrada que não coloca obstáculos de acordo com o tipo de veículo que irá passar por ela. Mesmo com velocidades diferentes, todos têm as mesmas condições de sair e chegar ao destino programado. Foi essa garantia que permitiu ao Google, em 1998, surgir num laboratório de Stanford e destronar o poderoso Yahoo. Ou que fez com que o próprio Mark Zuckerberg, em 2004, criasse em seu quarto em Harvard uma rede social capaz de acabar com o império do MySpace, a rede social dominante da época. Imaginem se Yahoo e MySpace pudessem usar o poder e a rede de parceiros que tinham para ter vantagens em relação a serviços melhores e mais inovadores? Provavelmente estaríamos num mundo mais atrasado do que o que vivemos hoje, certo?

É justamente isso que fez com que os indianos pulassem fora dessa tentativa do Facebook de "privatizar" parte da internet do país. O país vive um cenário de crescimento de serviços online e aplicativos desenvolvidos localmente. Ao permitir que uma empresa com o poder do Facebook ofereça acesso à população offline pelo Free Basics, a Índia correria o risco de prejudicar negócios promissores que não estão alinhados ao interesse da rede social.

Brasil ganha importância

Com o insucesso do Facebook na Índia, as atenções se voltam aos outros países em que a rede social já anunciou o Internet.org. Segundo o Facebook, o Free Basics está disponível para mais de 1 bilhão de pessoas em 38 países da Ásia, da África e da América Latina. Atualmente, conecta 19 milhões de pessoas. O Brasil destaca-se entre os países por sua base desconectada de 100 milhões de pessoas e principalmente por ter um governo que já se mostrou simpático ao programa.

Um rápido refresco de memória: em abril de 2015, Zuckerberg postou uma foto em seu perfil ao lado da presidente Dilma Rousseff. Ela usava um casaco do Facebook. Zuckerberg e Dilma anunciaram que o Internet.org começaria em junho daquele ano no Brasil. O primeiro passo seria dado num projeto piloto na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, envolvendo cerca de 200 mil pessoas. Depois, seria expandido para outras regiões desconectadas. Nada, porém, ainda saiu do papel. O Facebook tem um projeto de responsabilidade social em Heliópolis, mas que, segundo a empresa, não tem a ver com o Internet.org. "Treinamos proprietários de pequenos e médios negócios em Heliópolis sobre como aproveitar sua presença online para desenvolver e fazer crescer seus negócios", diz o Facebook em nota. 

Apesar do apoio do executivo, já há uma reação da sociedade e de algumas autoridades contra a chegada do Internet.org por aqui. No início de fevereiro, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu nota técnica defendendo que o projeto está em desacordo com o princípio de neutralidade da rede. No ano passado, em outro posicionamento, o MPF já afirmava que o Internet.org “trata-se de propaganda para a venda de acesso à Internet com roupagem de acesso livre à rede”.

No ano passado, o Brasil passou meses debatendo sobre as bases doMarco Civil da Internet, lei que foi sancionada em abril. Um dos aspectos mais importantes do MCI é justamente a garantia da neutralidade da rede. Por isso, muita gente estranhou o governo anunciando com entusiasmo uma parceria para um projeto que, da forma como está proposto hoje, está em desacordo com uma lei sancionada na mesma época.

Diferentemente da Índia, que deu amplo poder aos órgãos regulatórios do setor de infraestrutura e telecomunicações, a postura do governo brasileiro e suas agências têm sido a da vista grossa. Como já falamos no Experiências digitais, algumas operadoras brasileiras encontraram uma brecha legal no MCI e oferecem acesso gratuito a aplicativos como Facebook, WhatsApp e Twitter. A prática, chamada no jargão do mundo da telecom de "zero rating", violaria o princípio da neutralidade. Não se vê esforço significativo em fiscalizar esse tipo de atividade.

Um meio termo?

Mas, afinal, como ficará o Internet.org no Brasil? O parecer do MPF não fala em veto ao programa, como ocorreu na Índia. A avaliação do órgão é que o projeto deve ser apresentado às autoridades competentes, como a Anatel, o Comitê Gestor da Internet e oMinistério das Comunicações, além da Procuradoria Geral da República, antes de ser implementado. Para o governo, ele poderia ser um alívio para o fracasso que foi o Plano Nacional de Banda Larga, uma das principais bandeiras de Dilma em sua campanha à presidência.

Quem sabe o revés do Facebook na Índia não possa servir como um alerta a Zuckerberg. Estamos falando de um país com potencial para praticamente dobrar a base de usuários da empresa – hoje em 1,3 bilhão. Ao levar conexão sem limitações a comunidades carentes, o Facebook estaria oferecendo um serviço essencial em áreas que, para operadoras de internet, não há interesse comercial. Em países como o Brasil, os usuários de Facebook e WhatsApp (que pertence ao Facebook) somam quase que a totalidade dos usuários de internet. Ampliando a base e mantendo boa parte dessa proporção, a rede social já iria conseguir aumentar consideravelmente a sua receita.

Para o Facebook, crescer em número de usuários significa gerar mais receita. A maior parte dos ganhos da companhia vem de venda de publicidade baseada nas informações que oferecemos de graça em nossos perfis. O Facebook fechou o ano de 2015 com um faturamento de quase US$ 18 bilhões, 44% a mais do que no ano anterior. Vale, hoje, algo em torno de US$ 290 bilhões, o equivalente a mais de cinco Volkswagens.

Em maio do ano passado,  o pesquisador e escritor bielorrussoEvgeny Morozov concedeu uma entrevista a ÉPOCA com críticas bastante incisivas em relação ao Facebook e ao Internet.org. Ele tem a tese de que empresas do Vale do Silício vendem grandes projetos de negócio como se fossem programas de filantropia. Nesse aspecto, ao menos por enquanto, Morozov parece ter razão.

Foto: Reprodução/Epoca