Uma das contrapartidas do projeto original da renegociação de dívida dos estados com a União, acertado em junho, era uma definição mais rigorosa de gastos com pessoal dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Essa rubrica responde por grande parte da despesa dos entes federativos, que se afundaram em dívidas nos últimos anos. No caso dos estados, a lei fixa um limite de gasto de 60% baseado na receita corrente líquida. Dentro de gasto com pessoal, estão contemplados os ativos (incluindo adicionais, gratificações horas extras e outras vantagens), inativos e pensionistas. Também estão incluídos terceirizados, quando substituem servidores públicos, e contribuições recolhidas às entidades de previdência. Apesar de ter definições claras, a LRF recebeu interpretações diversas.
Por isso, a contabilidade criativa de alguns tribunais de contas estaduais resultou em uma diferença de R$ 64 bilhões entre o apurado com gasto de pessoal pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e os próprios entes federativos. Os dados do governo federal apontam para R$ 318 bilhões, contra R$ 254 bilhões dos estados, segundo dados compilados pelo economista José Roberto Afonso, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O cálculo exclui os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul por falta de informações.
O número menor levantado pelos estados ocorre devido a uma série de exceções que eles assumem em relação à LRF – desconsideradas no cálculo da Fazenda. Entre as mais comuns, está a retirada de gastos com inativos e pensionistas. Alguns entes alegam que eles são custeados por fundo previdenciário, ou que a previdência é atribuição do Executivo. “Em geral, essa criatividade para sumir com inativos é mais observada no âmbito do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público (MP). Ironicamente, são os poderes que deveriam zelar pelo cumprimento da lei”, alerta Afonso. Entre os malabarismos contábeis também estão a contratação de pessoal fora do ente para a realização de uma tarefa típica do Estado, uso de consórcios público para omitir despesas, terceirizações indevidas e o aumento de indenizações concedidas de forma atípica. Outras práticas costumeiras são a exclusão do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) dos servidores e de diversos tipos de auxílios, como moradia, educação, paletó.
Nos últimos anos, cada um dos 27 estados contabilizou os gastos com pessoal a sua maneira. Entre 2009 e 2015, a folha de pagamento dos entes passou de R$ 240 bilhões para R$ 318 bilhões com um aumento real médio anual de 4,7%. A ideia do ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa era endurecer a aplicação da LRF para por fim à gastança, que levou estados como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro a quebrar. A questão, considerada de extrema importância, foi deixada de lado. O atual comandante da Fazenda, Henrique Meirelles, optou por apresentar um projeto à parte, com regras uniformes para a LRF não só para os estados, mas também para a União e municípios. A ideia era também dar celeridade à aprovação do projeto de lei complementar (PLP) da renegociação da dívida com a União no Congresso. “Por se tratar de uma questão estrutural, e não conjuntural, como, foi prudente deixá-la para um segundo momento”, concorda Raul Velloso, especialista em contas públicas. Em 2015, segundo estudo Velloso, 21 estados comprometeram mais de 65% das receitas com pessoal e serviço da dívida. Na liderança, estão Rio de Janeiro (94%), Rio Grande do Sul (91,4%) e Minas Gerais (88,4%). No limite, os entes ficam sem dinheiro para pagar salários e fazer investimentos.
A farra fiscal é possível graças a uma relação de “cumplicidade” entre os poderes. Para que suas contas não sejam reprovadas, os governadores não intervêm nos tribunais de contas, que fazem vistas grossas às irregularidades. Assim, também se poupam de um eventual processo de impeachment aberto pela Assembleia Legislativa. Afinal, ninguém quer seguir o exemplo da presidente afastada, Dilma Rousseff. Como os órgãos que, em tese, deveriam ser os guardiões fiscais da LRF são ocupados por indicados políticos, o acerto é simples. “Após 16 anos de vigência da LRF, aprendemos que é preciso mudar a estrutura e, sobretudo, a cultura dos órgãos de regulação. Não faltam regras, mas rigor em cumpri-las”, afirma a economista Selene Peres Nunes, que foi servidora da STN por 22 anos. Neste período de vigência da LRF, nunca um governador foi punido por estourar limite de gastos.
“Como se pode fazer quando quem fiscaliza, denuncia, legisla e julga, é quem toma a iniciativa de sumir com parte de sua folha salarial?”, diz Afonso. Entre as mudanças sugeridas pelo economista na LRF está a criação de um Conselho de Gestão Fiscal, órgão independente para explicitar problemas e universalizar regras. Para a União, ele diz que seria importante estabelecer um limite para o endividamento – hoje inexistente. “A lei precisa ser refundada e a austeridade deve ser cobrada de todos os governos, federal, todos os estaduais, todos os municipais”, avalia.
A situação falimentar dos estados, com as finanças no fundo do poço, não impediram que eles continuassem contratando empréstimos, internos e externos, para aumentar salários de servidores. Se tivessem feito a lição de casa, os recursos teriam sido melhor aproveitados se investidos em inovação e infraestrutura, por exemplo. No círculo vicioso da dívida, os governadores recorriam à União para equilibrar suas contas. Resultado: a dívida dos estados e do Distrito Federal com a união já ultrapassa os R$ 420 bilhões.
Questionado por ÉPOCA se o governo trabalha com um prazo para a entrega do projeto de revisão da LRF, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmou que o foco, neste momento, é encampar a proposta de emenda à constituição (PEC) que impõe um teto para os gastos da União. “Debater a LRF é fundamental. A Fazenda disse que encaminhará um projeto à parte. Não podemos perder isso de vista, pois ela é quem vai dar transparência aos gastos de pessoal”, ressalta a secretária da Fazenda de Goiás, Ana Carla Abrão Costa.
Revista Épo a