Atualmente, a interrupção da gravidez só é permitida no país em três casos: se a mulher corre risco de morrer por causa da gestação; se a fecundação ocorreu por estupro; se o feto é anencéfalo (sem cérebro) e, portanto, não conseguirá sobreviver após o parto. Nas demais situações, a gestante que fizer aborto pode se presa por até três anos, enquanto médicos que realizarem o procedimento podem ser condenados a até quatro. A ação, à qual a BBC Brasil teve acesso antecipadamente, foi movida pelo PSOL, com assessoria técnica do instituto de bioética Anis. Não é possível prever quanto tempo levará para ser julgada, talvez anos. Isso dependerá muito do ministro que for sorteado para relatar a ação e de seu interesse em agilizar ou não o caso.
É função do Supremo, quando provocado por uma ação, analisar se leis vigentes no país estão em desacordo com a Constituição Federal. Nesse caso, o partido solicita que a Corte declare que os artigos do Código Penal (lei de 1940) que criminalizam o aborto desrespeitam preceitos fundamentais, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.
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As advogadas que assinam a ação destacam que a criminalização do aborto leva muitas mulheres a recorrer a práticas inseguras, provocando mortes. Argumentam também que o problema afeta de forma ainda mais intensa mulheres pobres, negras e das periferias, já que elas têm menos conhecimento e recursos para evitar a gravidez, assim como menos meios para pagar por métodos abortivos mais seguros, ainda que clandestinos.
Movimentos contrários ao aborto, por sua vez, argumentam que o direito à vida também deve ser garantido ao feto e, por isso, a prática seria inconstitucional. Esses grupos hoje contam no Congresso com o apoio de uma ampla bancada de parlamentares, em geral católicos e evangélicos, que atuam para impedir a legalização do aborto ou mesmo aumentar sua restrição.
É desejo desses parlamentares aprovar uma emenda à Constituição prevendo expressamente que o direito à vida está garantido desde a concepção.
"Muito provavelmente, mudando a nossa Constituição, passa-se a ter uma nova interpretação dessas leis que já estão em vigor no nosso país (e permitem algumas hipóteses de aborto)", disse no ano passado o deputado Diego Garcia (PHS-PR), em um debate na Câmara.
Mesmo que isso seja aprovado, no entanto, caberá ao Supremo a palavra final sobre se o eventual direito à vida do embrião se sobrepõe aos direitos das mulheres, ressalta a antropóloga Debora Diniz, do instituto Anis.
Essa tensão é destacada pela presidente do STF, Carmén Lúcia, no livro O Direito à Vida Digna, publicado em 2004, pouco antes de sua entrada na Corte. Trechos da obra são citados na ação para fundamentar o pedido de legalização.
"Quando se põe em debate o aborto, o que se oferece, num primeiro lance de discussões, é se o embrião e o feto seriam pessoas, porque, a se responder afirmativamente, eles titularizariam o primeiro de todos como é o direito à vida digna, a qual, como antes lembrado, é intangível e inviolável. Mas não se há de ignorar que a vida é o direito que se exerce com o outro, no espaço das relações entre sujeitos, não se podendo anular, portando, a condição de pessoa-mulher que, em sua dignidade, é livre para exercer a escolha da maternidade ou não", escreveu a ministra no livro.
Antes de assumir a presidência do STF, Cármem Lúcia foi sorteada para ser relatora de outra ação, movida em agosto pela Anis e a Associação Nacional de Defensores Públicos, que pede a liberação da interrupção da gravidez em caso de gestantes infectadas pelo vírus Zika.
A ministra deu rito de "urgência e prioridade" à tramitação e chegou a pautá-la para julgamento em dezembro.
No entanto, o caso deixou de ser analisado devido a outra questão mais urgente naquele dia – a decisão sobre se Renan Calheiros deveria ser afastado da presidência do Senado. Até agora o caso não voltou para a pauta.
O que esperar do Supremo?
Na última década, o Supremo tomou decisões que podem indicar uma abertura da Corte para o debate do aborto. Não está claro, porém, se há maioria para aprovar uma legalização ampla da prática.
Na decisão mais recente, há três meses, a primeira turma do STF, formada por cinco dos onze ministros, decidiu colocar em liberdade duas pessoas que haviam sido presas em flagrante supostamente realizando aborto em uma clínica clandestina.
Os magistrados poderiam ter se limitado a revogar a prisão preventiva, sob argumento de que os acusados podem responder ao processo em liberdade. Foi o entendimento de Marco Aurélio e Luiz Fux.
Três ministros, no entanto, foram além. Acompanhando o surpreendente voto de Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber decidiram que a prisão não deveria ser mantida também porque a criminalização do aborto até o primeiro trimestre de gestação é incompatível com direitos fundamentais das mulheres, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade física e psíquica, além de ferir o princípio da igualdade.
O corte do primeiro trimestre, equivalente a doze semanas, foi proposto por Barroso porque é adotado na maioria dos países que permitem o aborto, como quase todos os países da União Europeia, Rússia, Suíça, Moçambique e Uruguai, entre outros.
"Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno", escreveu o ministro.
Barroso defendeu ainda em seu voto que o Estado e a sociedade devem buscar evitar o aborto por outros métodos que não a criminalização, como "oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas".
A decisão causou imediata reação no Congresso: "Revogar o Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente", disse na ocasião o deputado Evandro Gussi (PV/SP).
E os votos no plenário?
A ação, caso seja levada a julgamento, será analisada em plenário, pelos onze ministros.
O caso citado acima sugere haver ao menos três votos simpáticos à tese defendida pelo PSOL. O fato de Marco Aurélio e Fux não terem acompanhado a decisão de Barroso não deixa claro qual seria o posicionamento deles sobre a ampla descriminalização do aborto, já que não entraram nesse mérito. Os ministros podem não ter seguido o colega por discordar da tese ou por não considerarem adequado abordar essa discussão ao julgar o habeas corpus.
Outras pistas sobre os possíveis posicionamentos dos ministros são os julgamentos que liberaram o aborto de anencéfalos (2012) e a pesquisa científica com células-tronco embrionárias (2008) – caso que provocou uma discussão sobre quais seriam os direitos do embrião e se sua vida estaria protegida pela Constituição.
Dos ministros que ainda estão no Supremo, votaram pela liberação do aborto de anencéfalos Marco Aurélio, Luiz Fux, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Celso de Mello. Ricardo Lewandowski disse que a decisão caberia ao Congresso e ficou contra.
Dias Toffoli, por sua vez, não participou do julgamento porque quando era advogado-geral da União já havia se manifestado na causa a favor do aborto de fetos sem cérebro.
Já no segundo caso, quando a maioria do Supremo entendeu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, foram favoráveis a essa decisão Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello e Gilmar Mendes – considerando apenas os que permanecem no STF.
A decisão de Lewandowski novamente destoou: ele votou que as pesquisas poderiam ser feitas, mas somente se embriões ainda viáveis não fossem destruídos para a retirada das células-tronco.
Toffoli era na época advogado-geral da União e defendeu as pesquisas.
Os votos favoráveis nesses dois julgamentos podem sinalizar uma abertura dos ministros à discussão da legalização ampla do aborto, mas não permitem tirar uma conclusão sobre quais serão seus posicionamentos.
Por outro lado, esses dois casos parecem indicar uma probabilidade alta de que Lewandowski vote contra a legalização do aborto em eventual julgamento da ação. Também sinalizam que ele tende a ter menos interesse em dar agilidade ao processo, caso seja sorteado relator.
Questionado sobre o tema há duas semanas na sabatina do Senado, o futuro ministro do STF Alexandre de Moraes (sua posse será dia 22) se esquivou de responder se é a favor ou contra a legalização. Segundo reportagem do Conjur, especializado em notícias jurídicas, antes de ser indicado Moraes já havia se manifestado contra a legalização ampla do aborto, por considerar que o direito à vida começa no momento da fecundação.
Por que agora?
A discussão sobre a legalização do aborto não é nova, então por que justamente agora a ação chega ao STF? Segundo Luciana Boiteux, professora de Direito Penal da UFRJ e filiada ao PSOL, a iniciativa do partido reflete um fortalecimento recente do movimento das mulheres no país.
No final de 2015, por exemplo, uma série de protestos feministas nas principais cidades do país conseguiu barrar o andamento no Congresso de um projeto de lei que buscava aumentar as penas para aborto.
"Essa ação está sintonizada com o movimento das ruas, com todo o fortalecimento desse debate feminista que o Supremo agora vai ter que enfrentar", afirmou.
Na sua opinião, é preciso levar a questão à Corte porque o Congresso "não é representativo para as mulheres". Atualmente, 90% dos parlamentares são homens.
"No Supremo, a gente vê uma maior abertura para um debate que já foi feito inclusive por diversas outras cortes no mundo. É um espaço tão legítimo quanto (o Congresso)", defende Boiteux, citando julgamentos sobre aborto nos Estados Unidos, Alemanha e Portugal.
Reprodução: BBC