Apesar de ser romantizada por muitos, a comemoração do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, tem um papel político fundamental para a sociedade devido à atenção voltada às pautas femininas e o incentivo à reflexão da força e potência da mulher para o individual e o coletivo.
Mas será que todas as mulheres são contempladas igualmente por essa data? Por décadas, mulheres cisgênero brancas foram as personagens perfeitas para ações publicitárias, matérias jornalísticas e programações durante todo o mês de março. As homenagens costumavam exaltar, principalmente, o seu papel enquanto dona de casa e mãe.
Não bastasse toda a anulação diária, as mulheres pretas continuavam sendo esquecidas – ou ignoradas?- inclusive em uma data que deveria servir para homenageá-la. A mulher preta transexual e travesti então, era e continua sendo invisibilizada, o que contraria o objetivo principal da comemoração, que deveria representar o crescimento, a inspiração e a luta por igualdade.
Em contrapartida, cada vez mais, mulheres trans e travestis têm ocupado espaços antes inimagináveis, mostrando que devem e podem ser quem elas quiserem. Um grande exemplo é Ariane Senna, primeira mulher trans psicóloga de Salvador. Além da importância da sua formação acadêmica, ela atuou em uma ONG que cuida de crianças que vivem com HIV, sendo coordenadora de projetos sociais e se capacitou em um departamento de AIDS em Brasília. Em seguida, ela foi selecionada para um curso de jovens lideranças, quando começou a ter um destaque maior, sendo chamada para integrar movimentos sociais. Desta forma, foi vice-presidente do Conselho LGBT do Estado da Bahia, secretária de Juventude da Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Depois, voltou para a sala de aula e na Universidade Federal da Bahia (UFBA) fez o curso Gênero e Diversidade, tendo a oportunidade de estagiar e, posteriormente, trabalhar na Defensoria Pública do Estado da Bahia como analista técnica na Coordenação de Direitos Humanos. Nesse meio tempo, ela foi para o Centro de Estudos Afro-Orientais, da UFBA. Lá, fez um trabalho de mestrado sobre a solidão da mulher trans, negra e periférica. Hoje, Ariane está fazendo doutorado em Psicologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e é coordenadora da Comissão de Mulheres e Relações de Gênero (COMREG), do Conselho Regional de Psicologia da Bahia.
“Eu acredito que para mulheres negras, trans e pobres, não há outra possibilidade de mobilidade social senão os estudos. Os estudos sociológicos, das ciências sociais afirmam essa coisa do estudo como migração mesmo, de mobilidade. Então, nessa época que eu fiz o meu mestrado, foi uma luta também com essa coisa da Psicologia, que ainda parecia ser muito branca e heterossexual. É uma luta por reconhecimento incessante e eu sei que isso impacta muito na vida das pessoas”, explicou Ariane.
"NÃO POSSO DEIXAR MEU SONHO NA MÃO DAS PESSOAS"
Quem vê essa potência, pode não imaginar as dificuldades enfrentadas por ela desde a sua infância. Aos 13 anos, ela foi expulsa de casa após começar a utilizar anticoncepcional e vestir roupas femininas.
“As modificações corporais, para muitas mulheres trans e travestis, são super importantes como afirmação de gênero. Então, a família vendo essa transformação, me expulsou de casa e eu sei o quanto que foi sofrido porque naquela época, quando eu tinha 13 anos de idade, as referências que se tinha de ser mulher trans e de ser travesti era a prostituição. Foi o único tipo de referência e nesse sentido eu vou entrando em uma trajetória de transformação de autoafirmação de gênero atrelada à marginalidade”, relembrou.
Esta foi uma realidade em sua vida até os 17 anos, quando entendendo a dureza da prostituição, Ariane começou a luta para ingressar no mercado de trabalho formal, momento em que viu várias portas serem fechadas. Logo, ela percebeu que o fator que a impedia de conquistar uma vaga, não era a falta de qualificação, pois o seu currículo se equiparava aos demais, mas sim o fato de ser uma mulher trans e se vestir com roupas femininas. Foi quando começou a adotar uma outra estratégia.
“Eu esperava três, seis meses e voltava, inclusive na mesma empresa. Eles não me reconheciam porque eu voltava com os cabelos amarrados, com os seios apertados por mais faixas para poder esconder e me vestia de homem. Depois de aprovada, eu acreditava que uma vez já trabalhando, eles iriam me aceitar independente de quem eu fosse. E isso não foi uma verdade. Então vieram novas lutas e demissões”, lamentou.
Mas foi desta forma que Ariane viu a oportunidade de mudar de vida. Em seu ambiente de trabalho, ela conheceu uma promotora de uma universidade particular e foi convencida a ingressar no mundo acadêmico, a partir do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o FIES. A vida acadêmica já iniciou de forma complicada, pois os outros alunos não queriam fazer trabalhos com ela.
“Eu tinha medo de trabalhar sozinha, medo de falar em público. E isso foi tudo enfrentado com a solidão. Se eu estou sozinha, vou ter que fazer, porque senão vou perder. Não posso deixar meu sonho na mão das pessoas e eu acabei com o medo. Com a falta de pessoas para trabalharem comigo, fui me aprimorando, fazendo meus trabalhos e tomando as melhores notas”.
Foi fundamental a decisão de investir em seu sonho e enfrentar a solidão. Com direito a homenagem na formatura e diploma de melhor aluna da sala de aula, Ariane se tornou a primeira mulher trans psicóloga de Salvador.
“A gente vive em uma sociedade que impede essa mobilidade social em todos os sentidos, desacreditando e retirando nossa autoestima. Acredito que isso impactou muito na vida de outras mulheres trans e travestis, porque elas viram como um caminho, como uma possibilidade. E posteriormente eu vi mulheres trans e travestis inscritas, inclusive na mesma universidade, no mesmo turno e no mesmo curso”, comemorou.
Até chegar em sua conquista, Ariane teve que lutar por direitos, que deveriam ser lhe dado naturalmente, mas que precisaram ser conquistados. Os olhares preconceituosos querem decidir não só as roupas, mas todas suas as escolhas, como qual banheiro usar, qual nome e pronome “adequados” e todas as outras situações que possam tentar descredibilizar a sua existência como mulher.
“Lidei com isso durante toda a minha formação acadêmica, lutando por questões de banheiro, porque não tinham essas discussões asseguradas ainda de banheiro e como nome social, sendo chamada pelo nome civil ou social, de acordo com o querer de cada professor que entendia essa necessidade do respeito”, relembrou.
"NOS TRATAM COMO CURIOSIDADE E ESPETACULARIZAÇÃO"
Mas afinal de contas, o que é ser mulher? Assim como as cisgênero, as mulheres trans sofrem diariamente as consequências do “ser mulher” na sociedade e lutam contra o sexismo e o assédio sexual. No entanto, a batalha é ainda mais intensificada devido à transfobia e a crença do homem cis sobre ter poder sobre elas.
Reconhecendo a sua importância na sociedade, Ariane se candidatou a vereadora de Salvador, pelo PSB, em 2020, e sofreu na pele os efeitos do preconceito. Enquanto algumas pessoas acreditavam na possibilidade de ver uma mulher séria e comprometida no poder, alguns homens enxergaram a chance de serem ainda mais opressores.
“Eu precisava reafirmar o tempo inteiro as minhas pautas, porque não é esperado que a mulher trans e travesti seja competente. É esperado que essa mulher tenha entrado lá pra poder fazer o jogo com a heteronormatividade ou com os homens brincando com elas e rindo, sendo espalhafatosa, afirmando que nós estamos no lugar do entretenimento. Eu fazia um esforço muito grande para desmistificar essa visão do que é ser uma mulher trans, sobretudo na política, e eu sinto que mesmo assim não foi o suficiente para alcançar esse meu espaço. Os homens mandavam mensagens de pênis em um número de WhatsApp publicamente informado nas redes sociais para tratar das minhas questões políticas, por conta desse lugar, desse imaginário social que as pessoas insistem em nos colocar”, lamentou.
São por pensamentos como esses que o Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Em 2021, ocorreram pelo menos 140 assassinatos contra pessoas transgênero. Desse total, mulheres trans e travestis representam 135 casos. Além disso, a estimativa de vida dessas pessoas é inferior a 35 anos, bem menor que a média nacional dos brasileiros cisgêneros. Com a pandemia, o cenário só se intensificou.
“Dados apontam que o feminicídio tem aumentado, sobretudo durante a pandemia. Com mulheres trans e travestis, especificamente, não seria diferente, porque mesmo com pandemia, muitas de nós continuamos na prostituição, nas esquinas e, dentro desse período, as esquinas passaram ainda mais a ficar com menos segurança”, disse.
Além da violência sexual e doméstica, as pessoas trans precisam ainda enfrentar um outro desafio que também pode custar as suas vidas: a desassistência no serviço público de saúde. Em 2021, Ariane sofreu com o descaso quando tentou remover uma prótese de silicone industrial e viu a falta de interesse dos médicos sobre a sua saúde.
“A negligência pelo próprio sistema de saúde em saber lidar, em estudar. Então, fica sempre a justificativa de que ‘isso não faz parte da medicina e nem da humanidade, é algo estranho que você fez com o seu corpo e a gente não sabe lidar com isso’. Então foi algo que eu ouvi, tanto do Hospital das Clínicas daqui de Salvador, quanto dos cirurgiões plásticos, porque eu fui em vários cirurgiões plásticos pra tentar fazer a remoção de silicone. Criminalizam as pessoas ao invés de dar uma assistência, e eu estou falando inclusive de ambulatórios trans e travestis. A clandestinidade para modificações corporais não é de agora e vai continuar enquanto a medicina fechar os olhos para os nossos corpos, nos tratar como curiosidade e espetacularização”.
"É SOBRE NATURALIZAR O QUE FOI DESNATURALIZADO POR MUITO TEMPO"
Todos esses desafios a faz ter a necessidade de sempre se reafirmar enquanto mulher trans, mas a sua existência vai além disso. “Eu sou uma psicóloga, eu sou uma mestra, eu sou uma doutoranda, eu sou leonina, eu sou brincalhona. Eu reitero todas as outras qualidades e adjetivos que me acompanham, só que não me qualificar também fica suscetível a diversas outras violências, inclusive institucionais”.
A sociedade ainda precisa avançar muito e desta forma, a luta ainda será longa. Neste sentido, Ariane acredita que daqui a 500 anos, a situação possa ser favorável. Neste meio tempo, faz-se necessário reafirmar o óbvio diariamente e prosseguir na luta para viver em uma sociedade justa e igualitária.
“Eu acho que a sociedade será inclusiva mesmo quando tiver cotas em todos os concursos públicos para mulheres trans e travestis, quando a gente vê mulheres trans e travestis trabalhando em todas as repartições públicas, no comércio privado. As pessoas precisam passar por um processo de coesão, onde paguem de fato pelos atos que cometem. A LGBTfobia já é considerada como um crime, já que existem várias jurisprudências de mulheres trans e travestis abarcadas na Lei Maria da Penha, então não é sobre criação de leis. É sobre educação, remodelação dos nossos costumes, a forma da gente ver a vida baseada com esse reforço positivo, mulheres trans e travestis transitando em sociedade e tendo seus direitos alcançados. Eu acredito que a cura do preconceito também é a informação, porque tem muito preconceito pela ignorância que é essa falta de conhecimento. O reforço positivo do Estado, inclusive em investir na mídia, em campanhas que mostrem as mulheres trans e travestis trabalhando, que mostrem que as mulheres trans e travestis tem direito a lazer, e que a gente possa ver mulheres trans e travessias no outdoors da rua. É sobre naturalizar o que foi desnaturalizado por muito tempo”.
Desta forma, voltamos para a pergunta inicial: será que todas as mulheres são contempladas igualmente pelo Dia Internacional da Mulher? Para Ariane, a data repete uma contradição vista também no Dia da Consciência Negra e no Dia da Visibilidade Trans, que visam cumprir uma determinada política, social e capitalista.
“Comemorar passa a ideia de que vivemos em uma sociedade harmônica. A gente comemora o 8 de março e é nesse dia em que mulheres, sejam elas trans, sobre as cis, mães de filhos, que tem uma dupla jornada ou tripla jornada em casa, no trabalho, e uma vida de agressão, de muita violência nos seus relacionamentos o ano inteiro. Essa mesma mão que é capaz de enforcar, é a mão que vai dar flores pra ela durante essa data. Por um outro lado, com a reivindicação dos movimentos sociais a gente percebe que é a reivindicação de direitos. Essas datas são importantes pra dizer que tem pautas específicas que precisam ser levantadas, porque ainda não foram contempladas. Então a gente aproveita essas datas pra poder trazer pra sociedade essas pautas políticas. A gente acaba denunciando também nessa data, a sociedade desigual que a gente vive e percebe que nunca se há um avanço como deveria haver. Quando a gente fala de 8 de março, a gente não está falando apenas mais da mulher bela, recatada e do lar. As mulheres trans e travestis quase nunca aparecem nas reivindicações, nas publicidades, sobretudo no discurso de mídia, quando a gente fala de violência contra as mulheres, de Lei Maria da Penha, do direito das mulheres. Então, ela é uma data importante nesse sentido, apesar de ter as suas contradições, como tudo no nosso Brasil”.