A Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB da Bahia divulgou nesta segunda-feira (30) uma nota pública sobre a liminar que suspendeu a apresentação da peça teatral "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu" no Espaço Cultural da Barroquinha, na última sexta-feira (27). Confira:
Nota Pública
A Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB da Bahia vem mostrar sua preocupação diante da decisão liminar, da lavra do juiz Paulo Henrique Albiani Alves, na ação tombada na 12ª Vara Cível e Comercial de Salvador sob o n. 0566408-05.2017.8.05.0001, em que determina a suspensão da apresentação da peça teatral "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu", em flagrante censura.
A peça cuja apresentação foi suspensa se propunha a promover uma "reflexão sobre a intolerância sofrida por transgêneros e minorias em geral", conforme divulgação dos produtores, e para isso representava Jesus Cristo na atualidade como uma mulher trans. O texto, escrito por uma dramaturga trans e encenado por uma atriz trans, vale-se da liberdade de expressão encontrada em sua manifestação mais ampla nas artes não para debater religião ou gerar questionamentos e críticas ao cristianismo, e sim para pregar a liberdade, a igualdade e o respeito à diferença como lições éticas universais.
A liberdade de expressão artística é constitucionalmente garantida, embora não seja absoluta. Ela encontra limite em direitos e garantias fundamentais alheios, como a liberdade religiosa e de credo. Não pode ela, portanto, ser usada como álibi ou fundamento para ataques ou ofensas à fé alheia. De outro lado, não se pode confundir posições e percepções individuais com a religião a ser protegida. A mera reinterpretação de símbolos religiosos, especialmente os que estão tão profundamente integrados à cultura, não pode ser considerada ofensiva à liberdade religiosa por afrontar o gosto ou a percepção de alguns fiéis, se não se dá de forma jocosa ou depreciativa. Mais que demonstrar a força e integridade da própria fé, a indignação com a encenação de um Jesus atual por uma mulher transexual, que propõe uma reflexão de combate à intolerância contra as minorias marginalizadas, evidencia o preconceito e a lgbtfobia, pois tal indignação não se apresenta quando se propõem outras representações de Jesus, como um homem heterossexual eventualmente casado. Vale relembrar que a mesma indignação por ver a imagem de uma mulher trans crucificada causa repulsa, enquanto a mesma imagem crucificada de um astro de futebol numa capa de revista é vista com maior naturalidade, mesmo ambas se valendo de um símbolo originalmente cristão que foi assimilado culturalmente por força da tradição, para representar e transmitir uma mensagem de perseguição e sofrimento, como a sofrida por Jesus.
A proteção à liberdade religiosa é defendida de forma intransigente pela OAB, como deve ser por qualquer instituição democrática. A liberdade de expressão também. E do mesmo modo que não se deve permitir que a liberdade de expressão seja invocada para sustentar e autorizar ofensas deliberadas e depreciativas contra qualquer religião, também não se pode aceitar que a liberdade religiosa seja usada como escudo jurídico para a prática da discriminação e preconceito racial, étnico, de gênero ou de orientação sexual, como se afigura no caso. Condutas precipitadas, como a do magistrado, apenas corroboram para o resgate de práticas tendentes ao totalitarismo.
Para Nietzsche, a força criativa do humano que está presente na arte (como em nenhum outro recurso) é o que nos dá condições para enfrentar os momentos difíceis da vida. Noutras palavras: a arte é um recurso humano para lidar com a dificuldade e ao proibir a encenação artística o Estado-juiz está retirando o direito das pessoas (inclusive das pessoas LGBT, que são diariamente atacadas, em especial as próprias pessoas trans) de terem a oportunidade de lidar com a violência de modo criativo, com potência para criar possibilidades. A vivência democrática é intrinsecamente complexa e plural, diversificada, e, portanto, difícil. O desejo por um mundo mais simples, com uma harmonia "pacífica" e sem quaisquer atritos pode levar a posturas intolerantes e ditatoriais.
É de se salientar, também, que a arte não está comprometida com a realidade. Ao contrário: ela é escape do real, daí porque ficcional, e trabalha com a metáfora e com o simbólico, traduzindo sentimentos, percepções, interpretando e reinterpretando fatos da vida. Por isso, a representação reinterpretada de uma figura religiosa histórica serve justamente à transmissão de uma mensagem sob outra forma, e que no caso em tela era justamente uma mensagem de amor, tolerância e inclusão, não devendo ser proibida se não adotar, como de fato não adotou, qualquer tom jocoso, de mero deboche ou depreciativo. Aliás, a percepção de que a encenação de Jesus por uma atriz trans é depreciativo só pode ser fruto da visão marginalizada e discriminatória dedicada às pessoas trans.
Nenhum direito é absoluto e é no convívio democrático entre direitos e entre pessoas que se constrói uma sociedade livre e justa. Por isso, não se pode admitir a censura prévia de um espetáculo privado, reservado, com acesso dirigido apenas àqueles que quiserem assisti-lo, sem divulgação ostensiva de seu conteúdo, em razão do sentimento particular de alguns de violação de sua fé. Àqueles que não gostaram da proposta teatral, lhes assiste o direito constitucional de não comparecer ao evento ou expressar livremente sua oposição. Não é democrático encerrar a possibilidade de convívio harmônico de dois direitos fundamentais, mediante o cerceamento de um deles, quando não comprovado o seu abuso. Não se pode admitir, enfim, o uso de um direito fundamental digno de respeito e preservação como ferramenta de opressão à diversidade na expressão artística.
Registramos, por todo o exposto, nossa indignação com a referida decisão liminar, ao tempo em que a OAB adotará as medidas cabíveis buscando salvaguardar a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito e os direitos humanos, conforme preconiza o art. 44, I, do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei. 8.906/1994).
Salvador, 30 de outubro de 2017.