Imagine parecer plenamente saudável aos olhos da sociedade, mas precisar se privar de prazeres de atividades como tomar banho de mar, andar de bicicleta e dirigir. Essa é a realidade dos portadores de epilepsia.
Neste sábado (26), é celebrado em todo mundo o Purple Day, aqui no Brasil traduzido para 'Movimento Roxo', que busca conscientizar as pessoas sobre o assunto e chamar atenção para os problemas de quem convive com o transtorno neurológico mais comum do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
No Brasil, a Associação Brasileira de Epilepsia estabeleceu o "Março Roxo". Em entrevista recente à Agência Brasil, o vice-presidente do instituto, o neurologista Lécio Figueira, disse que a estimativa é que 70% das pessoas com epilepsia no mundo não receberam diagnóstico e tratamento adequados.
Apesar das mudanças nas últimas décadas, o assunto ainda pode ser um tabu e aqueles que possuem epilepsia podem esbarrar com o preconceito em torno do distúrbio, com causas diversas. As crises epilépticas podem indicar outras condições de saúde, mas também podem estar relacionadas ao nascimento pré-maturo, problemas no parto e de ordem genética.
A advogada Consuelo Garcia Ferraz, 45, é uma das 3 milhões pessoas no Brasil que vivem com epilepsia. O número é incerto, pela dificuldade de contabilizar nas pequenas cidades e por nem todos utilizarem o Sistema Único de Saúde (SUS) para recorrerem ao medicamento.
Natural de Salvador, Consuelo viveu entre a capital e Vitória da Conquista, sul do estado, onde mora nos últimos anos. Diagnosticada aos 37 anos, ela conta que passou pela fase da negação, logo que foi avisada que a sua vida iria mudar para sempre. Ela chegou a parar de tomar remédio por conta própria, mas voltou a ter crises convulsivas.
"Quando fui diagnosticada aos 37 anos logo ouvi, na mesma hora, que teria limitações. A minha psiquiatra falou para mim 'doença crônica é para toda a vida, algumas coisas você vai ter que deixar de fazer e acabou. E quando você recebe uma notícia assim, dói na alma, sabe?", contou Consuelo ao Portal Salvador FM.
Mesmo com o apoio e compreensão de familiares e amigos próximos, a advogada admite que teve receio de compartilhar com outras pessoas.
"Eu fiquei com vergonha de falar para as pessoas, porque envolve vários estigmas. As pessoas olham de canto de olho, sabe?", acrescentou.
Caracterizada pela perturbação da atividade das células nervosas do cérebro, a epilepsia inclui sintomas como as crises convulsivas, com espasmos musculares em todo o corpo, salivação excessiva e a respiração ofegante.
"Muita gente pensa que você vai cair do nada, que vai começar a babar", diz Consuelo.
Em uma das situações vividas, ela relata que durante uma "paquera" decidiu abrir com o rapaz a sua condição. Logo percebeu o desconforto e perdeu o interesse.
"Eu percebi que algo ficou diferente, ele me olhou assim…", relembra.
MUDANÇA
Foi três anos reclusa em casa, sem vontade de sair, impactada com o diagnóstico e com a sua nova realidade. Um dia leu na internet sobre o Purple Day, criado em 2008 pela norte-americana Cassidy Megan, à época com 9 anos, com a ajuda da Associação de Epilepsia da Nova Escócia (EANS).
"Comecei a ler sobre o Purple Day, e ver a vida de Cassidy, com o transtorno neurológico dela, foi um exemplo ara mim. Aquilo me fez entrar na Associação Brasileira de Epilepsia, buscar outros perfis e me interessar mais pelo assunto", conta.
A escolha pela cor roxa foi inspirada na flor de lavanda, que tem essa tonalidade, e que representa a "solidão", sentimento de muitos que têm epilepsia, compartilhado por Consuelo.
Durante as suas pesquisas, percebeu que faltava em Vitória da Conquista e até mesmo na Bahia, uma comunidade mais organizada que pudesse reivindicar políticas públicas e se mobilizar em prol das pessoas que passam pelo mesmo problema.
"Pensei 'chegou minha hora' não para me exibir, mas tenho que fazer a minha parte. Se não fizer, não vai valera a pena a vida […] fiquei três anos sem sair, pois tinha muito medo, mesmo tomando remédio, porque a convulsão você cai no chão, perde o controle. Eu não saía. Mas eu não sou assim, sempre fui uma pessoa alegre, precisava transpor as barreiras. Comecei a pesquisar, estudei muito e descobri que aqui na Bahia faltava essa organização", descreve.
No ano passado, uma crise de desabastecimento de medicamentos para tratar a epilepsia foi o fio condutor que levou Consuelo a 'sair do armário'. Ela participou de uma campanha nas redes sociais e o seu post chamou a atenção da imprensa local.
"O remédio é muito caro, uma caixa custa R$ 400, R$ 500. Tem gente que usa uma caixa por semana. É absurdo, ainda mais com essa pandemia", lamenta.
A situação afetou a Bahia, que em fevereiro deste ano reiterou a falta do envio de medicamentos de alta complexidade, entre eles o Levetiracetam, mais moderno e com menos efeitos colaterais que o Gardenal.
O Ministério da Saúde chegou a sugerir que as secretarias estaduais distribuíssem uma dosagem abaixo do remédio, o que foi amplamente rejeitado pelos especialistas em saúde.
Com um transtorno parcial, Consuelo gasta cerca de R$ 700 por mês em seu tratamento. Mas ela sabe que a sua condição não é a mesma de vários outros baianos, que precisam do SUS para ter acesso à medicação.
A advogada pede que a doença seja encarada como um "problema de saúde pública", já que além do próprio custo que envolve o seu tratamento, existem gastos "indiretos", com a exclusão de pessoas epilépticas do mercado de trabalho;
"É muito melhor focar em ter políticas públicas afirmativas, cuidar, para não ter ainda esses custos indiretos para sempre", pondera, dizendo que acima disso, epilépticos precisam de "acolhimento afeito".
"A gente precisa mostrar como as pessoas sofrem e precisam de acolhimento, muito mais do que remédios, políticas, de acolhimento afetivo, de se sentir bem, inserido no meio da sociedade, pois somos pessoas normais. Podemos fazer todas as atividades, sem afastamento abrupto. Não somos diferentes, somos iguais", conclui.